A morte pode ser considerada uma terapia, quando a tentativa de manter alguém vivo é o pior remédio? Ou a decisão sobre a vida vai além do sofrimento ou do desejo? Em que ponto de uma tentativa de cura a vida se torna menos importante que a morte? Ao que parece, o problema não é para quem vai, mas para quem fica...
O avanço inexorável da Ciência, mais especificamente
no campo médico, vem evidenciar sobremaneira a necessidade cada vez mais premente
de uma revisão minuciosa do Estudo da Ética, erigido nos primórdios da
humanidade como mecanismo fundamental e propulsor do Método Científico ao qual
delimita. Hoje, os infindáveis recursos de que dispomos para prolongar a vida (inclusive
dos pacientes terminais e/ou até mesmo, dos pacientes com morte cerebral
comprovada) nos chama à discussão sobre a legalidade do princípio de preservar
a vida até a última instância como primordial no enfoque da medicina moderna,
visto que de certa maneira, em muitos casos, essa conduta significa prolongar o
sofrimento.
Até que ponto a melhor terapia seria deixar morrer?
Essa questão, já exaustivamente respondida sob o
ponto de vista de todas as crenças de que se tem conhecimento, vem de encontro
a um tema assaz ponderado nos últimos anos pelos estudiosos dos juízos de
apreciação referentes à conduta humana no trato científico da vida e da morte. É
sob esse prisma que ganhou força a ideia da morte também como terapia.
Objetivamente, falamos de Eutanásia e podemos dizer
que a sua origem nos remete inevitavelmente à Grécia antiga — muito embora haja
relatos bem anteriores dessa prática em povos Celtas. Da forma como contado, os
celtas matavam seus pais e parentes idosos e terminais para que não penassem
agonizantes. Ao longo do tempo, o termo eutanásia absorveu simploriamente para
os outros idiomas a conotação de "Morte serena e sem sofrimento, não
agoniosa".
Certo é que muitos filósofos se debruçaram sobre o
assunto, entre eles se destacaram alguns favoráveis à prática (Platão, Sócrates
e Epicuro), e também, alguns não favoráveis (Pitágoras, Hipócrates e
Aristóteles), o que não ajuda muito na defesa ou não da prática, considerando
que foram todos esses homens brilhantes. Por essa razão mesmo é que a evolução notadamente
da discussão somente aconteceu quando, em 1623, o estudioso Francis Bacon em
sua obra "Historia Vitae et Mortis" apontou a Eutanásia como sendo
"o caminho para a morte apropriada", e se aprofundou ainda mais
quando, em 1904, o estudioso Morache levantou um outro enfoque para o tema,
mais complexo e determinado pelo emprego do neologismo Distanásia: "A
morte prolongada, com sofrimento físico e psicológico do indivíduo
lúcido". A definição de Morache se constituía, no seu entendimento
filosofal, como a única situação em que a Eutanásia se justificaria, de fato. Essa
tese serviu de embasamento jurídico posterior para a formulação de leis mais
apuradas acerca da prática.
Atualmente, apesar dos avanços no entendimento dos
mecanismos legais sobre o assunto no decorrer do século XX, abertamente, apenas
quatro países do mundo admitem a Eutanásia: Holanda, Bélgica, Suíça e Alemanha.
Prática que, conforme definição do Conselho de Bioética da Organização Mundial
de Saúde, admitida como válida pelos principais Dicionários e Enciclopédias,
científicas ou não, do Mundo, é o ato, ainda que sem amparo legal específico,
de abreviar a vida de um Paciente cuja doença que o acomete é reconhecidamente
mortal, incurável e/ou degenerativa, de modo a que haja perda total ou parcial
da autonomia para a sobrevivência sem o devido amparo médico, e agravada
independentemente da terapia utilizada no tratamento da enfermidade, embora
necessariamente o paciente deva e/ou possa discernir sobre seu estado, mas não
necessariamente constituindo-se em um Paciente Terminal, ou seja, aquele cujo
tempo de vida independentemente do tratamento empregado variará de três a seis
meses, no máximo.
Segundo estudo aprofundado de vários professores -
entre os quais vale destacar os brasileiros Carlos Fernando Francisconi,
Genival Veloso de França e José Roberto Goldin - a Prática da Eutanásia pode
ser classificada quanto ao Tipo de Ação em:
1 - Eutanásia Ativa: Quando o ato deliberado de
provocar a morte do paciente sem sofrimento ocorre por fins misericordiosos;
2 - Eutanásia Passiva ou Indireta: Quando a morte
do paciente ocorre dentro de uma situação de terminalidade, ou porque não se
inicia uma ação médica necessária ou porque se interrompe uma medida
extraordinária com o objetivo de minorar o sofrimento;
3 - Eutanásia de Duplo Efeito: Quando a morte é
acelerada como uma consequência indireta das ações médicas que são executadas
visando o alívio do sofrimento de um paciente terminal.
Há também, ainda segundo esse estudo, a
classificação quanto ao Consentimento do Paciente em:
1 - Eutanásia Voluntária: Quando a morte é provocada
atendendo a uma vontade do paciente;
2 - Eutanásia Involuntária: Quando a morte é
provocada contra a vontade do paciente;
3 - Eutanásia não Voluntária: quando a morte é
provocada independente da vontade do paciente.
Também, ao longo dos tempos, algumas outras
interpretações mais subjetivas ou de cunho espiritual foram importantes para
destrinchar e entender melhor a importância da religião nas questões éticas: A
relevância e o enfoque que elas adquirem para cada credo específico,
influenciando decisivamente até na Pesquisa Científica direta e na implantação
dos resultados obtidos. Nesse sentido se destacaram os Teólogos Larrag e Claret
que, no Século XIX, formularam tese sobre a Eutanásia como sendo "A morte
em estado de Graça", abrindo novo leque interpretativo para o tema. Isto
mais tarde viria a influenciar alguns juristas espanhóis quanto à visão do
Homicídio Piedoso, vista mais adiante.
Todo esse ideário sobre a Eutanásia veio, no Século
XX, a comprovar a necessidade de se formular mecanismos legais mais complexos
acerca da validação ou não do ato, e embora haja uma vasta e competente
literatura sobre o tema - com trabalhos premiados de vários profissionais, em
todas as linhas de interpretação e de todas as áreas, inclusive médicos,
teólogos, até juristas e sociólogos — a competência específica da ciência para
dissertar e determinar sobre a legalidade do ato suplantou a qualificação
jurídica para legislar acerca do mesmo, ora limitando-a ao poder meramente
conceituai que a filosofia imprime no trato da medicina quanto à proteção à
vida.
Hoje, apesar do alargamento do limite científico na
manipulação da vida (demostrado com louvor nos casos que envolveram a clonagem
de humanos), ainda há um entrave quanto à capacidade de entendimento jurídico
da Eutanásia que cresce — infelizmente - na medida em que se progride nas
técnicas de revitalização dos seres viventes, uma vez que se mantém o discurso
ético científico original, ainda que já em muito reformulado. Dessa falta de
clareza quanto aos limites de competência nos valores acerca da defesa do
bem-estar do indivíduo humano resulta a necessidade de se discutir o objetivo
da medicina.
Alguns bons juristas tentaram sem tanto êxito
estudar o tema, embora outros tenham se destacado por observarem o aspecto
filosófico da Eutanásia, entre eles o Dr. Jimenez de Asúa, importante advogado
espanhol que, em fins da década de 20 do século anterior, formulou a tese
jurídica sobre o Homicídio Piedoso, posteriormente incorporada ao Código Penal
Uruguaio, que além de ter sido o primeiro país a admitir uma brecha legal para
a prática da Eutanásia, ainda hoje mantém esse código de leis datado de 1934.
Nesse caso e de acordo com a tese, a inimputabilidade facultada resulta das
seguintes condições apreciadas pelo júri, em casos de Homicídio:
1 - Ter antecedentes honráveis e comprovados;
2 - Ter realizado o Homicídio sob forte emoção,
caracterizada como piedade extrema, na tentativa desesperada de amenizar o
sofrimento da vítima;
3 - A vítima ter feito, comprovadamente, reiteradas
súplicas para que a deixassem morrer.
A salvaguarda feita no Código de Leis Uruguaio foi
aperfeiçoada por juristas e sociólogos através de estudo financiado pelos
Países Baixos, que durou mais de 20 anos, acompanhado também por Cientistas - e
aplicada na Holanda, a partir de 1993, na forma de Suicídio Assistido. Segundo
o estudo realizado, este ocorre quando uma pessoa enferma irreparável não
consegue realizar um suicídio sozinha, devido a limitações físicas e mentais,
comprovadas em Parecer de Junta Médica, e solicita o auxílio dos profissionais
que a cercam de cuidados para realizar tal ato. Este auxílio deveria ser
indireto para que não se caracterizasse como Eutanásia, o que de fato não
acontece, pois quase todas as vítimas são incapacitadas fisicamente — vale
lembrar que a lei não se aplica a pessoas comuns que tenham auxiliado outras a
se suicidarem, e nisso difere um tanto do Código Uruguaio, pois nesse caso se
constituiria delito grave, sem qualquer previsão de inimputabilidade.
Dentre os critérios para se solicitar o Suicídio
Assistido na Holanda constam:
1 - A solicitação para morrer deve ser uma decisão
voluntária feita por um paciente informado;
2 - A solicitação deve ser bem ponderada por uma
pessoa que tenha compreensão clara e correta da condição do doente e de outras
possibilidades. A pessoa que deseja morrer também deve conhecer dessas nuances;
3 - O desejo de morrer deve ter alguma duração
considerável;
4 - Deve haver sofrimento físico e mental que seja
insuportável, mesmo que a vítima não esteja terminal;
5 - A consultoria em Junta Médica imparcial é
obrigatória. Ainda assim, mesmo que se sigam todas as hipóteses favoráveis à
prática, o médico que realizar a Eutanásia sob forma de Suicídio Assistido, deverá
enviar extenso Relatório do ato à Autoridade Médica Local - sem emissão de
Atestado de Óbito até que se cumpra a praxe — e esta relatará a morte ao
Promotor Distrital, que decidirá ainda se o médico deve ou não ser processado.
Como se pode notar, há uma fina linha de seda que
separa o Suicídio assistido de um crime de Homicídio, que perdura e impede que
os médicos holandeses realizem a prática com segurança, mesmo que o doente lhes
comova de sua vontade.
Alguns outros países também autorizaram a Eutanásia
sob forma de Suicídio Assistido em seus Códigos Penais, casos da Colômbia, em
1997 – esta com a mesma abordagem do Uruguai - e da Bélgica, em 2002 — esta
última reformulou o conceito holandês, tornando-o mais restritivo. Suiça, Alemanha, Suécia e Luxemburgo, mais recentemente, também resolveram seguir por esse mesmo caminho do
suicídio assistido. Já na Áustria, a Eutanásia Passiva não é ilegal.
Israel é o único país asiático a permitir a Eutanásia. Por lá, há dispositivos legais específicos sobre o ato, que é permitido em doentes comprovadamente terminais, o que é bastante surpreendente, dada a evolução social apresentada no país.
Por outro lado, outros países preferiram rever e
reestudar os mecanismos legais que poderiam vir a dar esteio à essa prática,
mas sem muito sucesso: Caso da Austrália, que num curto período de tempo (entre
1996 e 1997) incorporou ao seu Código Penal uma lei que admitia a Eutanásia em
Pacientes Terminais, apenas, exatamente como fizeram alguns Estados dos EUA, na
mesma época, sendo que com mais sucesso do que na terra do canguru, visto que a
lei perdura até hoje nesses locais.
A Espanha, mesmo tendo sido o País precursor do
debate acerca do tema, ainda não admitiu nenhuma Lei favorável a Eutanásia, o
mesmo acontece com o Canadá, que apesar de não ter nenhum mecanismo legal
favorável, costuma punir com menos rigor os responsáveis por cometerem essa
prática. Já a França apresentou uma forma mais complexa de caracterizar a
prática como crime em seus domínios, diferenciando a Eutanásia Ativa — que
constitui Homicídio — da Eutanásia Passiva — que constitui Omissão de Socorro.
Alguns projetos de lei tentaram ser implantados na virada do Século, porém sem
o menor sucesso, um deles chamou a atenção, pois garantiria a possibilidade de o
paciente francês decidir sobre a melhor terapia para seu caso em detrimento da
ação do médico, dentre as quais, morrer. Atualmente, a França permite sedação permanente em pacientes terminais.
No Brasil a Eutanásia ainda é considerada
Homicídio, mas houve um Projeto de Lei sobre o assunto que tramitou sem muito
sucesso no Senado Federal por longos anos, desde 1995. Infelizmente, sua
abordagem era bastante falha em alguns pontos cruciais: Como no que dizia
respeito aos prazos para que o paciente refletisse sobre a sua decisão e como o
que determinava sobre quem seria o Médico Responsável pelo ato, por exemplo.
Ainda sim, se constituiu num mecanismo legal ousado e interessante, sabendo-se
que procurava reformular conceitos da tentativa francesa de possibilitar a
livre escolha do melhor tratamento por parte do paciente, abrindo novo ideário
de discussões acerca da Ética Médica no Brasil. Por outro lado, procurava
amenizar a pena das pessoas comuns que cometem homicídios piedosos.
Hoje, a Reclusão para os casos de Homicídio varia de seis a vinte anos, com a nova lei, um novo Parágrafo seria implantado descrevendo a possibilidade do Homicídio Piedoso, com reclusão que variaria de três a seis anos, somente. Outro Parágrafo significativo seria implantado relatando os casos em que um indivíduo qualquer desligasse conscientemente os aparelhos responsáveis por manter artificialmente a vida de uma pessoa enferma. Nesse caso, se atestado por dois médicos que o paciente não teria chance de sobreviver, o Réu ficaria isento de culpabilidade, ainda que tivesse a intenção de matar comprovada em juízo.
Não é difícil perceber que existe uma preocupação
progressiva por parte de todos os países do mundo acerca da Eutanásia, mais
acentuada após Congresso da ONU sobre o tema, no início dos anos 2000 e,
segundo estudo feito pela Universidade de Cambridge àquela época, até meados da
década de 10 dos anos 2000, pelo menos 85% dos países do planeta já teriam
legislado algo sobre o assunto, previsão que, infelizmente, não se concretizou.
De outro modo, no entanto, há mobilizações
interessantes na Inglaterra e na Irlanda acerca do estudo da Bioética e, é
provável que dentro dos próximos anos se altere alguma coisa nessa área em boa
parte dos países europeus. Aliás, já é tempo de mudanças comportamentais na
Sociedade da Ciência.
Bom, pelo menos numa coisa esses estudos - mesmo os
teológicos e filosóficos - continuarão sendo vazios: Em que ponto de uma
tentativa de cura a vida se torna menos importante que a morte?
Levantada a pergunta, cada um chegue à sua
conclusão.
Fontes de Pesquisa:
Jiménez de Asúa L. Libertad para amar y derecho
para morrir. Buenos Aires: Losada, 1942.
Admiraal P. Euthanasia and assisted suicide. In: Thomasnma DC, Krushner T. Birth
to death. Cambridge: Cambridge, 1996:210.
Diniz D. A despenalização da Eutanásia Passiva: O
caso da Colômbia. Medicina-CFM
1998; XE11(98):8-9. * Criegger BJ. Cases in Bioethics. New York: St Martin,
1993:137.
*Declaração de Madrid sobre Eutanásia — WMA/1987
*Declaração de Veneza sobre Doentes Terminais —
WMA11983
*Declaração de Política sobre o cuidado de
pacientes terminais com dor crônica — WMA/1990
*Códigos Penais Comentados dos Seguintes Países:
Uruguai; Holanda; Colômbia; Austrália; França; Bélgica; Brasil; Espanha e
Canadá
*Schneiderman LJ. Jecker NS. Wrong Medicine: Doctors, Patients and
Futile treatment. Baltimore: Johns Hospkins, 1995;8,
* Código de Ética Médica — CFM Brasil, 1988
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