O que um desastre natural é capaz
de causar a uma cidade?
Mais do que a destruição. Principalmente,
quando não sobra cidade. Esses mini-apocalipses têm ocorrido frequentemente nos países asiáticos
vitimados pela anti-obra divina, por meio de furacões, terremotos, tsunamis,
e passaram a ser uma questão de humanidade, não mais somente territorial. No último sábado,
16, a vítima infelizmente foi mais próxima do Brasil, nosso vizinho de
continente, Equador: um terremoto que atingiu incríveis 7.8 na escala de
magnitude, o mais forte no país desde 1979.
Antes de mais nada, se há alguma
vantagem em ser brasileiro, esta se traduz por estarmos num território quase
totalmente livre da ocorrência de catástrofes de ordem natural. Por aqui não
temos furacões, nem terremotos, o que afasta também a ocorrência de maremotos e
seus consequentes tsunamis de costa, além de quase todas as formas mortais de
tempestade de areia ou vento. Infelizmente, a despeito de morarmos nesse
território muito rico naturalmente, com clima extremamente favorável às
plantações e criação de animais e água abundante (somos o país com a maior
oferta de água doce do mundo), abençoado por sua localização geográfica exatamente
no centro da placa tectônica Sul-americana, nossa capacidade tecnológica e
nosso descaso político com o projeto das cidades nos impedem de estarmos livres
de ocorrências totalmente evitáveis, tais como desmoronamentos e tragédias
relacionadas a barragens que se rompem inexplicavelmente.
Vale ressaltar que essas
tragédias quanto maiores, quase que se confundem com o espírito das cidades
afetadas, de tal forma que elas passam a ser marcadas não somente pelas
aparições frequentes em noticiários, mas também por toda uma aura de medo e
fatalidade, por vezes, até mesmo por aparições julgadas como fantasmagóricas. Nesse
sentido, há relatos incríveis de sobreviventes desses diversos locais
devastados. Recentemente, houve um estudo para colação de grau amplo e muito
interessante a respeito do tema, conduzido pela estudante de Sociologia da Universidade Tohoku
Gakuin, de Sendai (Miyagi), no Japão, Yuka Kudo, de 22 anos, então natural da
província de Akita.
Yuka comandou um grupo de outras
sete pessoas. O tema escolhido para a monografia era a análise do modo como as
pessoas passaram a lidar com a morte após o Grande Terremoto ao Leste do Japão,
aquele conhecidíssimo, ocorrido em 11 de março de 2011. As constatações foram reveladoras
e demonstraram o quão distantes da real desfortuna dessas catástrofes podemos
estar. Segundo a estudante, antes ela via as mortes provocadas pelo tsunami muito
genericamente, apenas como milhares de pessoas que perderam a vida
conjuntamente. Entretanto, ao iniciar a série de entrevistas com os
sobreviventes locais, percebeu que estranhamente vários dos taxistas de
Ishinomaki (Miyagi) tiveram a mesma experiência sobrenatural de captarem como
clientes supostos fantasmas de pessoas que provavelmente foram vitimadas
mortalmente naquela tragédia.
As histórias são realmente muito assustadoras, pois apontam para relatos intensos e sem furos, o que as torna
muito realísticas. Para se ter uma ideia, em uma dessas histórias, um taxista
experiente relatou que num dia bastante quente do primeiro verão após o
tsunami, uma senhora vestida de casaco, o que lhe chamou bastante à atenção,
pediu para ser conduzida até Minamihama. Daí que lhe ocorreu de perguntar em
tom de confirmação: “mas, lá, praticamente, só tem terras vazias, pode ser?”. Em
seguida, se surpreendeu com a voz titubeante da senhora que, àquela altura, lhe
perguntava se houvera morrido. Assustado, ao se virar para o assento traseiro
abruptamente, tomou por si que a passageira já não mais estava lá.
A realidade sombria é que não
só esse, como muitos outros taxistas contam histórias semelhantes e extremamente
verossímeis, conforme apontam as pesquisas do grupo. Em outro relato, um rapaz,
também vestido de casaco, faz sinal no sentido de Hiyoriyama e pede para ir até
lá. Distraído, somente ao chegar no destino, o motorista percebe que não havia
cliente algum dentro do carro.
A conclusão de Yuka a respeito de
seus estudos aponta que a maioria dos passageiros citados como possíveis fantasmas
eram jovens, homens e mulheres, quase todos vestidos de casaco, e conclui: “Os
jovens costumam ter um forte sentimento de desgosto por ter deixado pessoas que
amam. Devem ter escolhido um espaço reservado como o táxi para transmitir esse
sentimento insustentável.”.
A única verdade que se extrai
desses relatos da jovem estudante é que, tanto para ela quanto para quase todos
os entrevistados, essas histórias não são viagens da mente. De fato, aqueles
motoristas tinham enorme envolvimento com a tragédia, muitos por terem perdido
até mesmo quase toda a família, e poderiam estar projetando seus medos e
angústias mais profundos naquelas aparições, mas a maioria comprovava suas
histórias pela demonstração de diários, com registros bastante fidedignos de
perdas de corridas e de outras demais circunstâncias estranhíssimas em que
tiveram que pagar do próprio bolso pelo taxímetro que fora ligado até destinos
sem passageiros.
Em outro episódio ainda mais
intrigante, ela conta que um motorista lhe relatou ter perdido familiares no
tsunami e prosseguiu, dizendo em seguida que para ele não era nada
surpreendente que acontecesse esse tipo de coisa e que se aparecesse
mais alguém naquelas condições, ele iria transportar, sim. O mais curioso
e muito revelador é que nenhum dos entrevistados contou suas experiências com
medo, e por isso mesmo, Yuka se demonstrou bastante impressionada com aquele
sentimento de reverência às vítimas, como uma experiência importante que
guardavam dentro de si.
As revelações do estudo de Yuka
comprovam como a vida das pessoas envolvidas em comunidade muda essencialmente em
circunstâncias trágicas coletivas, o que afeta de forma sensível a dinâmica das
cidades devastadas em catástrofes consideradas inevitáveis, transformando o
senso de comunidade de outrora em algo quase sobrenatural, uma espécie de aura
que contagia os que ficam e molda as gerações seguintes. Mesmo porque o maior desafio
passa a ser a reconstrução de um novo modelo sustentável de sobrevivência para esses locais, agora inóspitos.
No Brasil estamos experimentando essa
transformação social nas cidades da região serrana do Rio de Janeiro, mais
especificamente, Teresópolis e Friburgo, abaladas por enchentes terríveis e
faraônicas, e nas cidades de Mariana e Ouro Preto, em Minas Gerais, vitimadas
pelo rompimento da Barragem de Fundão, controlada pela empresa Samarco, que
culminou com a quase morte do importantíssimo Rio Doce, afetando até cidades do Espírito Santo. Lamentavelmente, ambos
os desastres considerados evitáveis.
O certo é que o mundo sempre
passará por essas situações inequívocas de autodestruição, ainda que avancemos
no aspecto tecnológico a níveis improváveis. Esses apocalipses localizados sempre existirão, cada vez com mais força e imprevisibilidade, até mesmo em função da autodestruição a que o homem tem submetido o planeta. No entanto, a grande questão por trás disso tudo envolve a forma como lidaremos com os desastres futuros, como no caso do
Equador, no qual uma força-tarefa internacional já foi designada para ajuda
humanitária.
Então, se por um lado o mundo
caminha para o fim pelo aspecto cada vez mais beligerante de seus maiores líderes,
por outro, novas lideranças humanitárias e sensíveis às mazelas sociais vêm avançando
e se sedimentando na contraposição dos aspectos caóticos da guerra pela paz, caso do
Papa Francisco. Em algum momento histórico próximo essas forças deverão se
cruzar, e como somos seres essencialmente sobreviventes, receio que nesse
embate a paz vencerá.
Os humanos se tornando humanos, nada mais justo.
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