Quase todos passamos a vida inteira procurando o caminho que nos leva a um paraíso distante e inacessível, mas basta um evento sobrenatural para que percebamos que o paraíso não é um lugar: É apenas ser feliz.
- Ah, não! Faltou Luz! Maldição!
- Droga!
Era por volta de dezoito horas e quarenta e cinco minutos
de um sábado chato de setembro. Eu e meu irmão Pedro moramos em Porciúncula,
interior do Estado do Rio de Janeiro, a essa hora, quase sempre estamos jogados
cada um ao seu canto da casa, que é pequeníssima, de centro de chácara, você
bem pode imaginar: cuidada e pintada na cal. Nada absolutamente ao nosso redor,
sem luxo qualquer. Estamos falando de um lugarejo ermo, daqueles em que se
planta e cria animais para sobreviver e cujas casas contam, em média, meio quilômetro
distantes umas das outras.
Fique à vontade para me chamar de Miguel. Fui eu mesmo
quem esbravejou a primeira interjeição do texto.
Agora, veja só: por essas bandas recônditas se paga caríssimo
pela luz. Eles chamam de tarifa sazonal, que ninguém sabe ao certo explicar do
que se trata, apenas que se aplica a lugarejos inóspitos. Bem, você já percebeu que estamos em um local de péssimo acesso.
Nem faz muito tempo que a luz chegou por aqui: conta menos de dez anos.
Trágico! Por ora, imagine você que crescemos em meio aos lampiões, em pleno
século XX, o que nos rendeu – a mim e ao Pedro – ótimas histórias de terror. Um
dia conto! Hoje, preferiria tão somente me deitar numa dessas redes mal esticadas à frente
do nosso casebre, construído a duras penas por nosso pai, Francisco.
Já caída a noite mais escura, sem luz, não temos sequer
telefone: estamos por conta da boa vontade da empresa que presta os serviços
essenciais de energia elétrica...
- Ei, Guel
(ele assim me chama), achei duas lanternas... Não sei se estão boas, mas estão
com pilhas. Vamos testar!
Alonguei-me desbaratinado para pegá-las, sem
conseguir enxergar patavinas... Os lampiões estão sem querosene, mais essa!
- Boas, sim! Olha isso!
Me pus – com o perdão da inadequação da próclise - preguiçosamente
erguido a apontar para as matas rasas próximas... Digamos que a luz não fosse
tão forte, mas dada a escuridão que se fazia, qualquer luz frágil iluminaria
como se fosse holofote.
O que nos restava nessa escuridão? Setembro é
quente que só... E nós, por essas bandas de Judas, sem um ventilador sequer.
Não ventava quase nada e a rede puída era de um tergal muito quente e áspero.
Para piorar, Tição, meu Pastor Alemão velho de guerra, pulou em meu colo e se
esfregava, lambendo meu peito, pescoço e por vezes, a boca.
Ah, já ia me esquecendo de dizer que papai se foi há mais tempo do que a
chegada da luz... E mamãe, quando sequer havia poço. Somos eu e Pedrinho, desde
sempre.
Somos adolescentes aos trinta e tantos anos, mas
vivemos bem entre as nossas peripécias. De certo que não estudamos muito, mas
temos boa plantação e gado jeitoso, como os antigos falavam. Tiramos a nossa
subsistência do que cultivamos. Quando é dia de glória, comemos um dos
leitões... E nos dias normais, uma boa galinha com quiabo é o que nos basta,
quando não, uma sopa de legumes. O gado é só para o leite: Eu gosto desses
bichos, não consigo matá-los... Digo, os bois! Bem, naturalmente, vendemos o excesso
para ter algum trocado. É o que basta!
- Ah Guel, vamos fazer algo!
- O quê, guri!? Nesse breu!
Passou um vaga-lume e Pedro se pôs em prontidão a
apontá-lo com a luz da lanterna.
- Vamos caçar vaga-lumes!
- Sei não... Mas é o que há!
E ri de soslaio, riso maneiro, de canto de boca...
Naquele mesmo ato, olhei ao redor e vi alguns pontos brilhantes acima da altura
da laje da casa, viajavam cintilantes num breu inigualável e quase não se podia
ter certeza sobre se eram insetos ou estrelas, tamanha a ilusão óptica que aquela
falta de amplidão do escuro nos causava. A um ponto, já não sabia se eram
estrelas cadentes ou vaga-lumes: uns cinco, seis... Foram aumentando... De
repente, muito abrupto, um enxame. Foram surgindo de cada canto, aparecendo em
piscadas sem que pudéssemos ter certeza sobre se estavam mesmo ali antes,
apagados. Foi algo mágico!
- Miguel! Miguel! Tá vendo isso, mano!!?
O mais novo sempre é o mais bobo.
- Claro, né, Pedro!
Por instantes nos olhamos sem termos muito sobre o
que falar um ao outro... Perdidos no encantamento soberbo da natureza que resolvia naquele
momento nos iluminar por meio de insetos estupendos, dotados de luz química. A
maravilha da natureza parecia o nosso pisca-pisca de Natal em setembro! Lindo e
fabuloso!
Deus sabe o que fazer para encantar as suas
criaturas.
Apontei a segunda lanterna e percebi que havia uma
nuvem atrás daqueles insetos que só era perceptível quando se refletia algo sobre
eles. Uma espécie de névoa acinzentada, fantasmagórica, quase assustadora, não
fosse pelo espetáculo que produzia num casebre no meio do nada, perdido no breu
assustador da roça sem luz.
Tornei a refleti-la.
O mesmo fenômeno, mais intenso... Cada vez mais.
- Pedro, está vendo essa névoa?
- O que será?
- Não faço ideia... Reflita a sua lanterna
também... Aponte comigo!
Ambos ficamos caçando vaga-lumes como se caçam Poquemons
(abrasileirei): um tanto infames e quase demasiadamente idiotas!
Em um instante, todos se apagaram juntos. Alguns
segundos apagados... E nós como crianças na carniça, girando como doidos
perdidos. Súbito: tornaram a acender! Inconstantes e alternados... Cada vez
mais... Um espetáculo teatral incontestável, intenso e imponderável!
A ideia de Deus ter criado tudo é mesmo motivadora!
A ciência nunca explicará o óbvio ululante...
Estávamos diante desse óbvio: Deus nos iluminando
por meio de uma dúzia de vaga-lumes. Lindo e poético!
Agora bailavam incandescentes...
Apagaram-se. Acenderam. Juntos... Repetidas vezes
fizeram isso... E ficaram constantes e repetidos, coreografados. Nós, de boca
aberta!
- Uau!
Exclamei alto. Pedro só arregalava olhos... Pensei
que fosse deixá-los saltar pela órbita ocular e me assustei com isso até mais do
que com a possível presença de espíritos no local!
Aos poucos fomos sendo envolvidos por vaga-lumes e
de certo modo, tomados por uma névoa que lembrava gelo seco... Eu girava com a
lanterna e Pedro também e nos batíamos, nos encostávamos, empurrávamos um ao
outro, e meio que sem sentidos corretos, acabávamos apontando as lanternas respectivas,
cada qual para os olhos do outro... Foi interessante e cômico, enlouquecedor e
belo, mas fui ficando tonto um tanto demais com aquele festival de luzes. Até
que tudo se apagou...
Fomos nos afastando e girando, procurando as
danadas... Elas, então, reapareceram, todas acesas, conjuntamente, e formavam
um inacreditável circulo ao nosso redor, ambos dentro daquela ciranda extraordinária de luz.
O que elas queriam?
Resolvi apontar a luz da lanterna para os olhos do
Pedro.
- Para, doido!
- Para nada!
E ele tornou a revidar... Não era mais possível
fechar os olhos, era muito escuro e só restava fugir do apontamento incessante
e agressivo daquele maldito feixe de luz. Éramos duas crianças adultas
brincando de cegar um ao outro, dentro de uma ciranda de vaga-lumes, no meio do
nada que era só breu!
Aquela luminosidade contrastada com o breu foi me
deixando muito cego. Em um certo ponto, eu só via vultos. Perdi a capacidade de
discernir cores e formas, somente via luzes brancas, cada vez mais brancas... Um
clarão surgiu e a beleza e o encantamento deram lugar a uma confusão de vozes.
Barulho, gritaria...
- Acordou! Acordou! PA a 120 por 70 mm, pupila reage
ao estímulo da luz com dificuldade...
- Você conhece Pedro?
Tomei por mim que estava deitado, mas só enxergava
vultos e formas nubladas, sem muita consciência... Não sabia exatamente onde
estava. Mas exclamei alto:
- Sim, meu irmão! Por que?
- Vocês sofreram um acidente e caíram numa
ribanceira há uma hora no caminho para Porciúncula... Você acaba de ressuscitar
de três paradas cardiorrespiratórias, incrivelmente! Seu irmão, não resistiu!
Lamento... Mas é um milagre que você esteja consciente! Qual o seu nome!?
- Miguel!
Respondi pronto, num susto avassalador... Dei por
mim que estava num hospital e não lembrava de absolutamente nada do que pudesse
ter ocorrido. O desespero foi me consumindo e meu coração parecia que ia
saltar pela boca, só palpitava forte! Eu estava sozinho no mundo e não
conseguia exprimir nada porque toda a pressão atmosférica da natureza recaía sobre mim: me sentia embalado a vácuo! Horrível!
Uma enfermeira entrou muito de repente com um pote
de palmito velho e transparente nas mãos e este parecia ao longe, sujo abaixo...
- Seu irmão só gritava para te entregar isso! Disse
que só você poderia entender...
Ouvi aquela explicação com ouvidos muito abafados, mas quando peguei o pote nas mãos, havia cerca de uma
dúzia de vaga-lumes mortos dentro dele.
Do outro lado, sentada ao corredor, uma criança com
pouco mais de quatro anos apontava a luz de uma lanterna velha insistentemente
nos meus olhos e eu já não conseguia desviar o olhar.
Meu destempero era tanto que eu não mais
raciocinava àquela altura. Resolvi apenas fechar os olhos, bem forte, até que
uma dor aterradora e substancial tomou conta do meu peito. Uma pressão
inacreditável e indescritível! Eu só urrava... Tentaram me conter, dois homens
apareceram com um desfibrilador, mas o meu campo visual já era muito diminuto e
obnubilado...
- Aaaaaahhhhhh!
De repente, abri os olhos: Tição sobre o meu peito,
me apertando e pulando batia com a pata direita sobre a minha bochecha... Tudo
ainda era muito escuro... Olhei ao redor e lá estava ele, dormindo, na outra
rede, Pedro! Com a sua tradicional paz de menino! A felicidade me transfigurou, até que senti algo abaixo do meu rim direito e me virei, soerguendo e
pondo uma das mãos dormentes abaixo de mim... Era o pote de palmitos velho,
repleto de vaga-lumes, dessa vez todos vivos e chamejantes, a um só ciclo
piscavam e mantinham a maravilhosa luz natural por alguns minutos! Milagre!
Descobri que o paraíso é nunca sair de onde te faz
bem!
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