Nem sempre a
inspiração é romântica e convencional, como estamos acostumados... Nem sempre
os eventos de sobrevida que sucedem ao coma são sobrenaturais... Mas sempre há uma
forma inexplicável de conectar eventos que nos possibilitem ser felizes sem muitos
porquês.
Quem sabe a hora da morte!?
Aparentemente, nem mesmo Jesus sabia... E aqui vão
dois pontos de escritor, nunca de ateu: ele sabia que morreria e que isto estava
próximo, mas não sabia quando, exatamente.
Ok. E você, sabe? Não. Não sabe. E isso é
determinante para a sua vida, para a minha, para a vida de todos. Porque tocamos
a nossa vida com a ilusão de que tudo é eterno, mas prontos para que tudo termine
a qualquer momento vão, na expectativa de que esse momento possa ser o próximo
segundo. É assim comigo... Receio que com todos seja mais ou menos parecido.
Então, achei por bem compartilhar algo com vocês...
Em um passado não muito distante, eu tive um coma.
Não me lembro de absolutamente nada do que ocorreu naquele período. Não mesmo –
e antes que você se pergunte - eu não tive essa coisa de sair do corpo e de me
ver como uma alma que flutua e vê a sua matéria de forma inequívoca dalgum
lugar mais alto... Que se lembra de tudo e sabe exatamente o que lhe ocorreu. É
bem verdade que nunca fui bom de lembranças, sequer dos sonhos... E fui ficando
bem pior com a chegada dos trinta... Agora, perto dos quarenta, já sinto até um tanto mais. Então, para ser muito franco, nem sei ao certo o que me ocorreu, e
se ocorreu, de fato me esqueci, o que é demasiado triste, você há de convir. De
todo modo, indo direto ao ponto, o tempo desse coma durou três meses e não é
dele que desejo falar, mas dos tempos anterior e posterior a ele.
O tempo é o segundo que você vive.
Vá lá que um segundo têm tempos diversos. Explico.
O segundo que você perdeu na fila do banco há de ter um ano, mas o que você
aproveitou, esse durou quando muito, um milésimo desse segundo.
Naquela tarde, eu estava somente trabalhando, nada absolutamente
especial. Desci da minha sala - de um trabalho altamente desinteressante que
nem te estimularia a saber qual - e como tradicionalmente fazia, fui fumar –
sim, eu fui fumante por malditos e infelizes longos anos... Cansei de me valer
dessa forma autodestrutiva de pensar na vida e em um dado momento dessa ocasião
em específico – que foi a última como fumante (ou penúltima, depois você saberá bem a razão) - olhei para o meu pulso direito,
no lado do rádio, e lá estava um percevejo. Odeio percevejo desde sempre...
Odeio muito. Não pelo cheiro, mas por se tratar de um bicho sem propósito na
vida, um daqueles seres bisonhos que não alterariam em nada a biota de onde
fossem extintos, caso fossem – que me perdoem os biólogos se eu estiver falando
uma enorme asneira, e provavelmente, estou. Mas vá lá... Um percevejo só fede e
foi isso que ele fez em mim: pousou, deixou o seu cheiro ruim inigualável e
voou, foi embora.
O resultado foi o misto de um cheiro insuportável
de cigarro na mão esquerda – e não consigo explicar até hoje a razão de fumar com essa mão, já que sou destro - com um cheiro esdrúxulo de percevejo na mão direita.
Foi então que olhei para o meu lado direito alto e havia uma marquise que se
anunciava por cair fazia tempo, e quando abaixei, receio que muito abruptamente,
me sobreveio uma tontura estranha e alguns segundos de desconcertante agonia,
aqueles que precedem um desmaio que não ocorre, e realmente eu não desmaiei –
não, nesse momento.
No segundo seguinte, com a cabeça baixa ainda, passei ambas
as mãos no rosto. Foi o pior cheiro que senti na minha vida... E ficou
registrado porque dali ainda deu tempo de olhar o relógio. Às 10 horas, 52 minutos
e 30 segundos daquele dia, apaguei. Esses foram os exatos últimos momentos que
antecederam ao episódio...
Três meses de agonia se seguiram sem que as pessoas
soubessem se eu viveria.
Muitas teses foram contadas aos meus familiares,
mas a verdade é que sucumbi à hipertensão arterial e naquela idade, 22, haveria
de ser fatal: eu deveria morrer.
Enfim, não morri... Ou não estaria aqui contando
essa história, você há de convir. No entanto, o que me ocorreu depois é que foi
realmente bizarro.
Exatamente noventa dias depois do início,
acordei... Às 10 horas, 52 minutos e 31 segundos do dia 29 de março de 2001
meus olhos se abriram, já na direção visual do meu relógio de pulso digital. Nesse
mesmo pulso direito – eu usava o relógio no punho direito - havia um percevejo
e na minha mão esquerda, um cigarro, pela metade... E pasmem: eu estava dentro
de um CTI com enorme gosto de fumaça nos lábios e a minha primeira expiração
foi repleta daquela fumaça densa de quem tragou alcatrão no segundo anterior.
Sim. Eu fumei em coma... E não se atreva a me perguntar como! Só sei dizer que
aquilo ocorreu: não foi sobrenatural.
A primeira sensação que tive foi de que havia se
passado apenas um único segundo. Como se eu apenas tivesse abaixado a minha
cabeça e levantado, logo em seguida. Mas eu estava deitado, e quando dei por mim,
achei apenas que aquilo não tinha qualquer lógica... óbvio que não tinha...
Àquela altura, eu estava em um ambiente amplo, de
CTI, com divisórias mal definidas por cortinas e áreas muito espaçosas, sempre
repletas de equipamentos. No meu entorno, realmente só havia o silêncio humano
da doença mal adornado pelos bipes sonoros repetitivos daqueles monitores
cardíacos, e vidros... Vidros distantes por todos os lados, ao longe, por onde
as pessoas de fora, quase embaçadas, poderiam ver os outros muitos pacientes
que compartilhavam aquele ambiente etéreo comigo. Ao centro, uma espécie de
estande, cheio de médicos e enfermeiros que só se entreolhavam e compartilhavam
as suas impressões sobre os exames das telas e as condições de quase morte de
seus pacientes terminais, quase sempre.
Ouvi gritos ao longe... Muito ao longe...
- Acordou! Acordou!
Não sei de quem foram, mas quando tornei a virar
para o meu lado esquerdo, vi a minha avó, viva, inteira... Ela que já havia morrido
há tempos: como!?
Tudo ao meu redor se embaçou ainda mais e eu só
conseguia ver com certa clareza o meu entorno mínimo, algo por volta de três
metros quadrados. Ela me tomou o cigarro e espantou aquele percevejo
reincidente... Pôs-me a dormir com uma de suas mãos, a direita, na minha testa, descendo até os olhos... Não disse uma única palavra! Ela me hipnotizou apenas
alguns segundos após eu ter acordado, trinta, quando muito.
Evidentemente que não sonhei... Nunca me lembro dos
sonhos e essa é uma verdade desanimadora, já que sonho sempre com o meu amor.
Só apaguei e não sei dizer por quanto tempo, mas sei dizer, pelos gritos que
ouvi e pela realidade que vivi e todo aquele ambiente, que era sono mesmo, que
já àquela altura estava acordado do coma. Noventa dias e um segundo depois. O
que dizer?
Eu acordei.
Estive dormindo, mas desperto...
O tempo passou e eu, quase de fato, dormi por alguns doze, treze anos. Não
morri nesse tempo, é bem verdade, mas também não vivi... E o meu segundo teve um segundo para
mim e muitos anos para aqueles que o viveram. Minhas lembranças estão mortas: reabri os olhos somente no dia 17 de maio de 2014, às 16 horas e 34 minutos, na hora
exata em que ela chegou para o nosso primeiro encontro.
Só quem já amou vai saber que a vida só conta tempo
quando a gente ama...
Ah, o percevejo... Estava lindamente pousado sobre
o lado esquerdo do seu rosto, acima da testa, sobre os seus cabelos vermelhos
(auspicioso). Eu o retirei como que fazendo um carinho com a minha mão direita.
Ela sequer percebeu e até hoje nunca soube.
E se hoje estou aqui escrevendo, é por ela...
Depois de muitos e muitos anos não vividos, ela chegou.
E trouxe consigo a inspiração!
- Ops... Mas que diabos você ainda faz aqui,
percevejo!?
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