Seremos detestáveis? / Seremos admiráveis? / Genitores ou gênios? / Digam-nos quem dá à luz os irresponsáveis? / ... / Todo mundo sabe come fazer bebês / Mas ninguém sabe como fazer pais! - Trecho livremente traduzido da música Papaoutai, do músico Belga Stromae.
Antônio sempre chegou à sua casa do trabalho,
religiosamente, às dezenove horas e trinta minutos. Entretanto, de uns tempos
para cá, repentina e inadvertidamente, sua rotina havia mudado radicalmente.
Passou a chegar do trabalho sem hora certa, quase sempre depois das vinte e
duas. Isso quando não chegava bem mais tarde: Já houve dia de chegar às duas da
manhã!
Em tempo, é sabido que há alguns meses havia voltado
a morar na casa do Fernando, depois de ambos terem perdido suas respectivas esposas
em circunstâncias horripilantes, em um mesmo acidente automobilístico trágico
na descida da vulgarmente conhecida Estrada da Serrinha, sentido Região dos
Lagos, estado do Rio de Janeiro: para um deles, no entanto, o destino foi marcantemente
pior, porque perdeu também a mãe.
Fernando, por outro lado, cuidador nato e muito atento,
educador por natureza, instinto e profissão, andava muitíssimo intrigado e
preocupado com aquele comportamento novo do Antônio e passou a vigiá-lo de
longe, sem muita pressão. Do mesmo modo, sem tanto alarde, passou a tomar nota
mentalmente de seus horários habituais e foi criando certo banco de dados cruzado
com as mudanças comportamentais que ele vinha desenvolvendo naqueles últimos
tempos, algo que apesar de antiquado, os especialistas em educação são unânimes
em afirmar que ainda funciona muito bem nesses casos em que você acredita que
alguém da sua casa está sendo consumido pelas drogas.
Era uma possibilidade, sim.
Bem, sobre o Antônio, não se podia dizer que era propriamente
alguém do seu tempo. Na verdade, era um cara quadrado, indivíduo de formação puramente
empresarial: administração de empresas e contabilidade. Trabalhou durante anos
em escritórios, com a contabilidade de firmas, algumas até famosas, e seu mundo
era restrito aos negócios. Agora, quase perto dos 40, careta e viúvo, recém dedicava-se
a um sonho antigo, daqueles que somente burocratas enfadonhos têm: corretagem
de imóveis.
Não se pode negar: conheceu gente nova nos últimos
tempos, em seu novo emprego na Lapa, bairro boêmio da zona portuária do Rio de
Janeiro, apesar das tristezas e perdas recentes. Ainda relativamente jovem, aparentava
certa satisfação com as mudanças profissionais empreendidas, estando agora em
seu ramo de atividade preferencial. Não tinha ainda um novo amor, é bem
verdade, mas nem vinha pensando propriamente nisso, e além de tudo, não era só.
Tinha o Fernando, seu parceiro e protetor fiel, com quem agora dividia um ótimo
imóvel situado na Glória, zona sul do Rio de Janeiro.
Certo dia desses, Antônio chegou a casa por volta
de vinte e três horas e foi tomar banho corrido, sequer pensou em comida
antes... Obviamente, Fernando ficou muitíssimo intrigado e resolveu fazer algo
que considerava espúrio e inadequado, mas que imaginava naquele momento
inoportuno ser a única maneira de saber sobre o que Antônio vinha aprontando,
já que o trintão pouco se abria acerca da sua vida íntima. Entrou no quarto
dele e se anunciou espalhafatosamente, para sentir o clima:
- Boa noite! - Disse alto.
Antônio não respondeu, mas para Fernando aquilo se
deveu ao fato de que o seu chuveiro era um daqueles famosos “banhões” dos mais fortes,
ligado em rede canalizada de gás natural e que, portanto, poderia ser aberto em
sua amplitude máxima de vazão de água sem desperdício da temperatura do banho
quente: um som ensurdecedor. Diante desse cenário, ganhou certa coragem e se
aproximou da mala de couro marrom do outro, que estava sobre a cama. Abriu-a e
começou a fuçar com muita calma, sem emitir qualquer som, mas só achou papéis
inúteis e uma bolsa pequena com apetrechos básicos, como pente e escova de
dente.
Em algum momento, deu por si que o banho havia
acabado, e resolveu por bem retornar alguns passos para trás, como se quisesse
apenas parecer que estava chegando à porta naquele momento em que Antônio
saísse de seu banheiro, e por lá ficou mais alguns segundos, estático,
esperando que abrisse a porta e desse de cara com ele.
- Boa noite, está fazendo o quê aqui? - Disse
Antônio.
- Falei boa noite, não foi baixo, pensei que
houvesse escutado. – Respondeu Fernando.
- Não. Diga... Estou cansado... – a essa altura, um
tanto ríspido.
- Nada demais. Vim mesmo saber se deseja jantar.
Preparei assim que anoiteceu, imaginando que chegasse mais cedo, mas como não
veio, requentei há alguns minutos...
- Não, comi algo na rua. Muito obrigado pela
preocupação – Retrucou Antônio, já se dirigindo ao encontro do Fernando para
fechar a porta do quarto.
Fernando recuou alguns dois passos e soerguendo-se,
tratou de aprumar levemente o corpo, inclinando a cabeça para beijá-lo na
testa, como qualquer pessoa que cuida e ama, normalmente, o faz. E apesar do
diálogo seco, deu boa noite novamente e saiu, no entanto, não sem perceber
certo cheiro forte de erva que não saberia distinguir adequadamente, todavia,
que não poderia ser de outra coisa, senão maconha. Ficou indignado, mas não
disse nada naquele momento, desceu calmamente as escadas e tratou de sentar no sofá
da sala, televisão desligada... Estava um tanto atônito.
No dia seguinte, ficou à espreita do Antônio. Às
duas da manhã, ele chegou...
Novamente, esperou que fosse para o banho e dessa
vez entrou com menos cuidado e mais cisma. Fuçou a mala do Antônio de todas as
formas possíveis e não encontrou absolutamente nada incriminador. Decidiu olhar
melhor ao redor do quarto e viu um pequeno objeto redondo em cima da cabeceira
esquerda da cama, algo que mais se assemelhava a um porta-comprimido temático,
em alumínio ou aço inoxidável, possivelmente. Sobre ele, um adesivo com as
cores da bandeira jamaicana e um nome sugestivo: Bob Marley.
Não pensou duas vezes, rapidamente se aproximou do
objeto já imaginando do que se tratava: era um moedor para preparação de
maconha, semelhante àqueles objetos culinários que se usam pra moer alho,
separando casca de polpa.
Fernando se encheu de ira, enfurecido por tomar
parte daquela situação inacreditável e pensando nos seus desdobramentos, não
imaginou outra cena senão aquela em que quando Antônio saísse de seu banheiro
ele já o cobrisse de insultos e, por que não, de porrada?
Ali ficou: severos e intermináveis minutos.
Quando a porta do banheiro se abriu, estava sentado
na cama com o moedor aberto na mão, cheio de resquícios de maconha, olhou
firmemente para Antônio e exclamou tão alto quando a Kate Perry no refrão de Fireworks:
- Paaaaiiiii!!! O Senhor está fumando maconha!!!!!!!!!!!!! MACONHEIRO!!!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário